Esta é uma transcrição fidedigna na sua maior parte. As únicas alterações feitas foram em instâncias nas quais a concordância verbal, ou outra qualidade ortográfica, não correspondia a maneira fonética em que Jones expressava seu raciocínio. Adaptações também foram feitas substituindo termos não convencionais (expressões regionais, etc.) por sinônimos de sentido semelhante.
Acontece em vários momentos na história, da gente usar uma linguagem política por tradição e essa linguagem política, essa linguagem conceitual, não corresponder mais a realidade. Eu acho que hoje isso acontece com Os Comunistas e os marxistas no Brasil. Por quê? Vamos tentar entender.
O movimento operário europeu se divide com a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa, a partir daí surgem duas grandes alas: os bolcheviques (que depois criam o movimento comunista) e os social-democratas. Os Comunistas como força política revolucionária, que quer acabar com capitalismo que quer fazer uma revolução socialista, e o social Democratas que não querem acabar com o capitalismo a partir de uma revolução, mas querem fazer reformas profundas, que vão mudar as condições de vida da classe trabalhadora. Vão efetivamente fazer diferença na vida das pessoas.
Essa divisão entre revolucionários e reformistas, de 1917 até 1980, fazia sentido no mundo inteiro. Efetivamente você tinha a grosso modo três grandes forças políticas: eram liberais/conservadores em alguns países (inclusive eram os Democratas cristãos que cumpriam esse papel), revolucionários comunistas (que às vezes eram reformistas mas enfim, comunistas) e os Social Democratas/socialistas. Então na Itália, por exemplo, foi um exemplo clássico: você tinha um grande partido comunista, o partido socialista e a Democracia Cristã, bem delimitado. Então a democracia cristã, mais liberal e sem perspectiva de reforma, o partido comunista e os socialistas que defendiam reformas, mudanças e por aí vai.
De 1980 em diante, ou seja na era do neoliberalismo, essa divisão vai deixando de fazer sentido em vários países, porque os partidos comunistas vão morrendo ou então deixando de ser comunistas (ainda que em algumas situações preservem o nome). Os partidos social-democratas se tornam neoliberais. (Vamos lembrar a famosa frase de Margaret Thatcher: ela diz que a sua maior vitória foi fazer os trabalhistas Ingleses defenderem o programa neoliberal.) [1] O partido socialista francês, por exemplo, é Liberal até o talo. O partido socialista português idem, liberal até o talo. O partido socialista brasileiro de Tabata Amaral e João Campos, é a mesma coisa. Então veja: dos anos 80 em diante essa divisão deixa de fazer sentido.
Claro que isso acontece de maneira diferenciada, de país para país. Então, por exemplo, no Brasil nos anos 80 essa divisão fazia sentido, ainda que no Brasil as forças comunistas não fossem reformistas, fossem inclusive liberais. Porque o PCB, o PCdoB e o MR8 nos anos 80 estavam defendendo aliança com o PMDB. Além disso, o movimento comunista Brasileiro apoiou Moreira Franco, candidato da Rede Globo, candidato de grupos de extermínio, candidato da burguesia contra Darcy Ribeiro, na eleição para governador do Rio de Janeiro. Mas veja, no Brasil fazia sentido essa divisão. Você tinha efetivamente forças reformistas, forças socialistas e forças comunistas. O PT estava nascendo, o PSB de Miguel Arraes ainda era reformista. Na ala mais avançada você tinha o PDT de Brizola. Dentro do PT você tinha organizações comunistas muito fortes, como PRC que era do Chico Mendes e José Genoino. Só que no Brasil a partir de 1994, a vitória de FHC e do bloco neoliberal provoca uma radical reordenação das forças político-ideológicas no Brasil. Coloca a classe trabalhadora na defensiva e abre a porteira para a morte do brizolismo e para a adaptação à direita do PT, para radicalizar a degeneração ideológica do PCdoB e do PSB, que já estava avançando. Então esse movimento se completa nos anos 2000, com a famosa carta ao povo brasileiro de Lula, [2] de tal sorte que daí em diante a gente não tem mais forças reformistas no Brasil, no sentido preciso de que: a maioria da esquerda que a gente chama de reformista, não é reformista.
Veja, eu já debati isso em meu canal. Qual foi a reforma que Lula fez? E eu digo reforma, viu gente? Não é política pública. O Governo Lula e Dilma efetuaram muitas políticas públicas importantes, mas qual foi a reforma que eles fizeram? Qual foi a reforma que o PCdoB, o PSB e o PDT, que foram governo aqui em Pernambuco, no Maranhão e no Rio Grande do Norte, fizeram? Pernambuco passou 16 anos de governo do PSB com PCdoB na vice-governadoria, PDT parte do governo PT em boa parte de sua duração. Qual foi a reforma que aconteceu? Veja: a gente usa uma linguagem que não faz mais sentido! Não faz mais sentido, pois repare bem: a gente não tem de um lado da conjuntura brasileira revolucionários e reformistas, o que a gente tem é um campo majoritário de esquerda só que liberal, que não é impulsionador de nenhuma reforma, que não é impulsionador de mobilização e politização da classe trabalhadora. Que consegue oferecer apenas políticas públicas, que são importantes, com defesa da participação popular, mas sem capacidade de decisão. Que defende a valorização dos direitos humanos e da democracia, só que em um sentido muito mais jurídico do que a classe trabalhadora exercendo o poder popular concretamente. Ou seja: o que a gente chama de reformista não é reformista.
Aí claro dentro, do PSOL você tem você tem organizações políticas e lideranças que são reformistas, que são firmes e defendem reformas. Você tem movimentos na órbita do PT (que eu não vou citar nomes), como organizações políticas e movimentos sociais, que são reformistas, que defendem de maneira séria democratização da mídia, reforma agrária e que não é só retórica, que não é só discurso eleitoral. Mas de maneira geral, o que a gente chama de “esquerda brasileira” não é reformista.
E aí eu faço até uma brincadeira com as pessoas. Tem uma galera que faz uma caricatura, que fala assim: “Tá esperando o quê? Lula e o PT nunca foram revolucionários!” Veja bem, ninguém está cobrando a revolução de Lula, do PT e das forças políticas que compõem esse campo não. O problema é que não tem reformismo!
Vou dar para vocês um exemplo de reformismo: durante o governo Bolsonaro/Michel Temer, a Petrobras sofreu com várias privatizações e destruição da sua cadeia produtiva. O que que um governo reformista faria? Tipo o governo da Cristina Kirchner na Argentina, o governo do López Obrador no México, o governo de Evo Morales na Bolívia ou o governo de Hugo Chávez na Venezuela. Esse governo faria uma auditoria, para pegar todas as transações ilegais. Convocaria o povo para as ruas, faria um debate público e reestatizar o que foi privatizado da Petrobras. Foi assim que foi feito na Argentina, foi assim que foi feito na Bolívia e foi assim que foi feito na Venezuela. O López Obrador é bem moderado. Inclusive eu diria que López era um reformista de direita, por assim dizer. Aconteceu quase agora um processo nacionalização no México. Parcial, é verdade, mas nacionalização do lítio.
Quando foi que aconteceu algo parecido no Brasil? Quando foi que uma empresa privatizada foi nacionalizada? Quando foi que o governo Lula bancou o enfrentamento contra algum interesse fundamental da burguesia? Pelo contrário, o Lula se orgulhava de em seu governo, ele ter baixado o número de greves e ocupações urbanas/rurais e protestos. O discurso de Lula até o governo Bolsonaro era se orgulhar de ter sido a figura política que mais entregou pacificação social, que reduziu a luta de classes e reduziu a temperatura dos conflitos. Então veja, essa linguagem está equivocada. Não existe uma esquerda majoritária reformista no Brasil.
As forças, e aqui é o centro da tese, as forças revolucionárias da esquerda brasileira, elas são menores, correto? Correto. As forças reformistas, também. Reformistas e revolucionários são minoritários na esquerda brasileira. O que é majoritário é um campo social liberal, que defende a classe trabalhadora, políticas públicas, política de combate à fome, que fala que é importante a valorização do salário mínimo, que diz que direitos humanos são importantes, que defende o meio ambiente, que diz que racismo é ruim, que machismo é ruim, que a lgbtfobia é ruim, que fala em defesa dos povos indígenas e da preservação da Amazônia, enfrentamento ao aquecimento global, etc. Mas tudo isso sem uma perspectiva de reformas profundas. Isto é: uma perspectiva de mobilização popular para enfrentar os interesses da burguesia. Então assim, já falei diversas vezes: o reformista era Hugo Chávez! Ali era um projeto reformista. Reformista é o projeto na Bolívia, da revolução democrático cultural liderada por Evo Morales. Reformista era o Brizola dos anos 80, reformista era Miguel Arraes do pré golpe de 64, percebe? O que a gente tem hoje no Brasil, majoritariamente, não é reformismo.
E aí eu acho inclusive que o campo Comunista no Brasil precisa calibrar suas críticas, porque a gente tá criticando os caras por serem reformistas, que na verdade não são reformistas! São até piores do que isso, porque o reformismo é falho por não resolver os problemas fundamentais da classe trabalhadora, mas ele tem uma vantagem: a luta política é pedagógica para a classe trabalhadora. Então quando você mobiliza a classe trabalhadora, você sabe como a mobilização começa, mas não tem como saber como ela vai acabar. Então pode ser que uma mobilização que comece muito limitada, cobrando por exemplo a estatização das refinarias da Petrobras, que foram privatizadas, ela começa assim: muito limitada, mas ninguém sabe onde ela vai parar. Ela pode acabar terminando por cobrar a estatização da Vale!
Porque a dinâmica do movimento de massas é imprevisível sobre vários aspectos. Você pode ter um movimento de massas que começa progressivo, e se der abertura é capturado pela direita, como foi o caso de junho de 2013, ou você pode ter um movimento de massas que começa muito tímido e limitado, mas se radicaliza. Então uma força reformista, em alguma dimensão ela facilita o trabalho dos marxistas, porque a partir do momento que ela coloca massas em movimento, massas trabalhadoras que ela mobiliza e tenta politizar, ainda que de maneira limitada, burocrática e restrita, mas tentou mobilizar; a disputa de consciência para radicalidade é facilitada em comparação com o imobilismo do social liberalismo, que não mobiliza ninguém e só quer acordos de gabinete. Prova disso é que no século 20 de vários movimentos reformistas surgiram forças revolucionárias. Pense por exemplo nos montoneros que surgiram do peronismo na Argentina. Pense, por exemplo, nos tupamaros no Uruguai. Pense, por exemplo, no brizolismo que surgiu do varguismo no Brasil. O brizolismo pré golpe militar, que vai efetivamente da campanha da legalidade até o golpe, liderava uma corrente nacional revolucionária. Então assim, na própria história do reformismo você tem vários momentos que os caras ativaram o movimento de massas, perderam o controle dele e o povo se radicalizou!
Inclusive eu até brinco (essa frase pode pegar mal porque alguém pode querer tirar de contexto para me atacar) que se o que se entende por esquerda majoritariamente no Brasil fosse reformista era bom! Porque se fosse estava tocando enfrentamentos fundamentais, e não está. Então eu acho que um dos elementos fundamentais para a gente entender a crise e a situação brasileira, e dar resposta a essa crise, é a gente mudar nossa linguagem política. A gente tem que parar de chamar de reformista quem é social liberal. O diagnóstico preciso da esquerda brasileira é que marxistas e reformistas são minoria frente a um larguíssimo campo social liberal.
Então Glauber Braga é um reformista radicalizado, socialista e radicalizado, mas é minoria. Ele é minoria no partido, dele ele é minoria no parlamento brasileiro e ele é minoria no campo progressista brasileiro. É um reformista sério, consequente, honesto e por aí vai. Mas onde é que a gente tem um bocado de Glauber Braga? Seria muito massa se tivesse uns 30 ou 40 Glauber Braga na Câmara dos Deputados, seria maravilhoso! Mas não tem. Então o que eu quero fazer é abrir esse debate. Eu acho que a gente tem que calibrar a linguagem e a análise política. O que a gente tem majoritariamente na esquerda é um campo social liberal. Eu já tenho um vídeo no canal: Carlos Nelson Coutinho e a americanização da política brasileira, debatendo o que é social liberalismo. Reformistas de verdade são minoria na esquerda brasileira, tal qual os revolucionários.